top of page

A prisão em flagrante e o controle jurisdicional imparcial

A análise da prisão em flagrante no direito brasileiro vê-se influenciada pelo pensamento de João Mendes Júnior, que destacou a relação intrínseca entre direito penal e processo penal1.


Este vínculo indica, desde as Ordenações Filipinas até a consagração do juiz de garantias (art. 310, do CPP), a necessidade de controle jurisdicional rigoroso para assegurar a legalidade do flagrante2.


Tal perspectiva descortina a fragilidade de conceitos como fumus comissi delicti e periculum libertatis para esta prisão, dada a importância da análise material do fato e respectiva tipicidade penal - atividade um tanto diversa do mero reconhecer a fumaça do direito3.   


Adotada a correta premissa, cumpre entender que a prisão em flagrante não possui caráter definitivo quanto à materialidade da infração penal. Mesmo nas situações do art. 302, incisos I e II, do CPP - em que há observação da conduta e/ou resultado -, a flagrância não equivale à prova suficiente do fato. E, nos casos do art. 302, incisos III e IV, do CPP, a distância entre a prisão e a suficiência probatória exibe-se, ainda, mais evidente4.


Assim, ao se tratar a liberdade como a regra do processo penal de índole constitucional5, a prisão em flagrante deve ser entendida como medida cautelar e efêmera6, cuja própria legitimidade depende da subsequente validação judicial. 


No Estado Democrático de Direito, a comunicação imediata da prisão (art. 3º-B, I, do CPP c.c. art. 5º, LXII, da CR) e a célere apresentação do preso em flagrante ao magistrado7 (art. 3º-B, II, e art. 310, do CPP) mostram-se essenciais para proteger a pessoa humana e controlar a legalidade. 


Na audiência de custódia, o juiz penal deve realizar o juízo de tipicidade e confirmar, ou não, se o fato descrito configura crime e se inexiste causa de excludente de ilicitude (art. 310, par. 1º, do CPP)8.


Nessa tarefa, o juiz de garantias deve manter a imparcialidade, resistindo a discursos de emergência da Polícia Judiciária e do Ministério Público. A função jurisdicional não se apresenta corroborar com as primeiras imputações, mas assegurar que a persecução penal respeite o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR) e se destine a perquirir a verdade, desde o início.


A mencionada audiência constitui momento crucial para evitar que o calor do flagrante influencie, de maneira indevida, o juiz penal. Daí a importante vigilância da defesa quanto aos riscos à neutralidade de espírito9 do magistrado nos casos de flagrante-delito.   


A tendência de equiparar flagrância à certeza material do fato se ostenta incompatível com sistema penal garantista. O juiz criminal deve desconfiar de narrativas prontas e assegurar que a prisão não se converta em antecipação de culpa. 


Em síntese, a prisão em flagrante só se legitima quando submetida a crivo judicial imparcial10, o qual reforça a proteção aos direitos individuais (v.g., o estado de inocência), por meio do rígido respeito à legalidade estrita e ao dever de fundamentar as decisões judiciais.


___________


1 Almeida Junior, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Laemmert & Cia., 1901, v. 1, p. 308.


2 Também, como fruto dos tratados internacionais que o país é signatário. Ver:  Tópor, Klayton A. Martins; Nunes, Andréia Ribeiro. Audiência de custódia: controle jurisdicional da prisão em flagrante. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 29-segs.. 


3 Pitombo, Sergio Marcos de Moraes. Obra em processo penal. São Paulo: Singular, 2018, p. 299.


4 Branco, Tales Castelo. Da prisão em flagrante. 5ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 45.


5 Ver, dentre outros: Moraes, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: Juspodium, 2018, p. 324.


6 Natureza precautelar para: Lopes Jr., Aury. Prisões cautelares e habeas corpus. 10ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2025, p. 50.


7 Deus, Paulo Ricardo Aguiar de. Prisão em flagrante: uma crítica da institucionalização da custódia no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 47 e segs..


8 Barros, Vinícius Diniz Monteiro de. A prisão em flagrante no modelo constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Arraes Ed., 2013, p. 74.


9 Com precisão, Joaquim Canuto Mendes de Almeida explica a imparcialidade: "posição desinteressada de espírito entre duas soluções contrárias" (Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: ed. RT, 1973, p. 100).    


10 Sobre o conceito de imparcialidade, dentre outros: Pitombo, Antonio Sérgio Altieri de Moraes. Imparcialidade da Jurisdição: problemas contemporâneos do processo penal. São Paulo: Singular, 2018, p. 52-5.


Comentários


bottom of page