Os últimos anos têm contribuído para o ceticismo generalizado dos brasileiros em relação à classe política. Há uma impressão de que nunca se presenciou desordem dessa dimensão antes.
Para piorar, pesquisas (1) mostram a evolução patrimonial dos eleitos a contar da análise de declarações de bens e dados eleitorais.
Quer dizer, mesmo dados públicos não escondem o enriquecimento de membros do Executivo e do Legislativo.
Além disso, recentes notícias de jornal evidenciam a gravidade do denominado Caixa 2 das campanhas eleitorais, cujos efeitos danosos se espraiam no exercício dos mandatos.
Ambas as questões interligam-se, tornando a tutela penal necessária em complemento aos demais controles formais dos recursos utilizados pelos partidos e candidatos. Nesse sentido, Comissão de Juristas (2) projetou tipos penais, com o fim de reprimir a manutenção e a movimentação de valores à margem da contabilidade de partido político, bem como a omissão de receita ou despesa na prestação de contas de partido ou de campanha eleitoral (art. 339 e art. 340, do Anteprojeto de reforma do Código Eleitoral - normas penais e processuais penais).
Tal anteprojeto, na inteireza, continha remissões abaixo dos dispositivos legais, de relevância para compreensão do conteúdo e para o conhecimento da autoria das sugestões de redação.
Também, a Exposição de Motivos elaborada pelo professor René Ariel Dotti possuía notas de rodapé com informações quanto à reforma eleitoral, indicações de doutrina e de cunho normativo.
Ao ser encaminhado o anteprojeto ao Congresso Nacional e ao Presidente da República, tanto as remissões como as notas de rodapé desapareceram para a surpresa de seus autores.
Como forma de remediar a extirpação indevida do texto, fez-se posterior publicação pelo Tribunal Superior Eleitoral com objetivo de se preservar a versão integral (3).
O episódio ilustra como se dá o processo legislativo em nosso país, em particular, quando se almeja inovar em matéria de direito eleitoral.
Entretanto, não se deve imaginar a novidade do problema. Para ilustrar, transcreve-se uma crônica (4), dentre as muitas esquecidas da lavra de Lima Barreto, literato que muito sofreu com o preconceito da cor, bem assim com a rejeição de parte dos intelectuais.
Rememorar o artigo do grande escritor constitui o modo pelo qual se convidam membros do IBCCRIM e demais leitores a acompanharem as próximas sabotagens à reforma eleitoral.
A fraude eleitoral
[Careta] -30/10/1915
Desde muito que várias personalidades da República, próceres de vários partidos e facções que se propunham salvar a pátria, mediante medidas inócuas ou simplórios cortes sistemáticos na arraia-miúda; desde muito, dizíamos, que várias personalidades se reuniam para resolver o problema da verdade eleitoral.
A comissão, como fazia há seis anos se congregou naquela tarde para apresentar ideias tendentes a obter da exata manifestação das urnas a legítima representação nacional.
O senador Brederodes apresentou as suas ideias, o seu colega Marcondes as suas opiniões; Machado Malagueta aventou alguma coisa; enfim toda a comissão trabalhou a valer e os alvitres mais sutis, mais severos, mais saudáveis, foram sugeridos para que a fraude fosse evitada nas eleições federais.
Despediram-se amáveis, sorridentes. E, ao famoso "secretário" da comissão, o oficial da Secretaria do Senado, Raide, pareceu que, daquela confabulação, ia sair obra de grande valia e alcance.
O seu desgosto, ao supor isto, era de não poder ele também assinar o projeto. Seria a imortalidade ...
Brederodes, que era econômico, desceu a pé até as ruas centrais. Atravessou o Campo de Santana apreensivo.
Chegou à chapelaria Watson e encontrou logo o seu adepto Fulgêncio, deputado desconhecido
Falou-lhe este com todo o respeito devido ao chefe supremo do seu partido.
- Como vai Vossa Excelência?
- Não estou bom hoje, Fulgêncio.
-Porquê?
- Aborreci-me no Senado, na reunião da comissão.
-Que houve?
- Escuta aqui.
E trouxe o seu assecla para um canto.
- Aquele canalha do Malagueta parece que anda de mãos dadas com o Dourado e os meus adversários no estado.
-Porquê?
- Não é que ele propôs que, na reforma eleitoral a fazer-se, não houvesse voto cumulativo? Estou derrotado ...
Enquanto isso se passava, Malagueta, que viera de bonde, já se havia encontrado com a mulher e as filhas em uma confeitaria. Uma destas lhe disse:
- Papai parece que está contrariado.
-Pudera!
- Que houve, Chico?-perguntou-lhe a mulher:
- O tratante do Marcondes propôs na comissão que só houvesse um deputado por distrito e que estes fossem equivalentes ao número de deputados que cada Estado dá.
-Que tem?
- Que tem? É que não faço nem quatro lá na nossa terra ...
Marcondes não ouviu certamente o tratamento que lhe deu o seu amável colega, mesmo porque ele tinha corrido do Senado para a casa de uma adorável criatura, a Manon, francesa nascida nos arredores de Varsóvia.
- Marcondes não está bom hoje - disse-lhe esta.
- É verdade. O patife do Brederodes propôs medidas que acabam com as atas falsas nas eleições.
- Que tem isso?
- Que, se eu assinar o projeto, o Iuca, o chefão, não me reelege.
O projeto, como era de esperar, não foi apresentado ao plenário e a comissão ainda estuda os meios eficazes de acabar com a fraude eleitoral.
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(1) Veja-se a obra: Rodrigues, Fernando. Políticos do Brasil - Uma investigação sobre o patrimônio declarado e a ascensão daqueles que exercem o poder. São Paulo: Publifolha, 2006.
(2) Comissão instituída pelo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (Portaria 391, de 10.08.05; Portaria 454, de 14.09.05), Ministro Carlos Vellozo, composta por: Renê Ariel Dotti (relator), Gerardo Grossi, Torquato Jardim, Costa Porto, José Guilherme Vilela, Fernando Neves, Nilo Batista, Benjamin Zymler, Lucas Furtado, Everardo Maciel, Miguel Reale Júnior e Leonice Severo Fernandes.
(3) Tribunal Superior Eleitoral. Reforma Eleitoral: delitos eleitorais, prestação de comas (partidos e candidatos), propostas do TSE. Brasília: SDI, 2005.
(4) Lima Barreto, Afonso Henriques de. Toda Crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachei Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004, v. I(1890-1919), pp.246-7
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