Imagine-se numa grandiosa sala de concerto, quando, elegantemente, vestidos entram os músicos que compõem a orquestra. Ouve-se o sinal e todos que lotam a plateia aguardam o início da sinfonia. De repente, de modo inusitado, o maestro dirige-se ao público e manifesta a impossibilidade de se tocarem os instrumentos musicais, naquela situação, porque as partituras não foram impressas em papel digno daqueles profissionais. Passa-se a palavra ao pianista, aos violinistas, aos violoncelistas e demais virtuosos: todos, uníssonos, afirmam a impropriedade de tocarem Johann Sebastian Bach com olhos em mero papel sulfite. Não há divergência e, com a mesma pose, retiram-se do palco. As pessoas voltam às casas sem nada ouvir, além das justificativas para aquele silêncio.
A cena pode parecer descrição do absurdo, mas, com frequência, jurisdicionados e advogados assistem algo semelhante à metáfora. Faço aqui a comparação entre a orquestra inerte e os julgadores em Altas Cortes. Gasta-se muito dinheiro do Estado para se reunirem os qualificados funcionários públicos para os observarmos a não dizerem o direito - quer dizer a negarem a jurisdição (juris+dictio).
Sobram argumentos para os magistrados expressarem que faltam condições formais para conhecerem dos agravos e outros recursos. Páginas e páginas veem-se escritas para explicar o porquê de tantos processos judiciais encontrarem-se inaptos ao julgamento. Pouquíssimos se preocupam com o mérito das lides, ou com a liberdade do indivíduo posta em jogo no caso concreto. É preciso filtrar a quantidade de processos judiciais, basta se examinarem as estatísticas - repetem em coro.
Mas será que se teria chegado a momento próprio de autocrítica de todos nós quanto ao fracasso do nosso sistema recursal? A lei positivada deveria indicar o que e como julgar, ao invés de impor requisitos a serem cumpridos para a apreciação dos recursos. Gravidade dos crimes, quantidade das penas, valor jurídico em discussão, natureza da causa, enfim, aspectos objetivos mereciam amparo legal para se voltarem os julgamentos de mérito.
Mostra-se inaceitável a quantidade de decisões proferidas - que repetem outras tantas - apenas a impor ao grande público a impossibilidade de se apreciarem as causas em Juízo. Não seria mais fácil dizer quem tem o direito? Rememorar o brocardo "da mihi factum, dabo tibi ius"?
E, com todo acatamento, o problema longe se encontra dos orçamentos públicos para o Judiciário e da remuneração da "orquestra". A questão se apresenta visão equivocada do para que serve a Justiça. Os processos judiciais não se constituem em simples sequencias numéricas que identificam os autos. Em cada processo em julgamento há conflito, drama entre pessoas a esperar solução.
Os magistrados perderam a dimensão do humano ao encararem as causas que lhes chegam em grau de recurso. Examinam os processos judiciais - em especial, os assessores - para encontrarem motivos que escapem à fundamentação quanto a causa de pedir e ao pedido. Exclamam: "Que maravilha! Um erro na procuração ad judicia! Aplique-se o precedente!".
Escrevo este texto em virtude de uma coincidência de opostos. De um lado, acabo de ler - inspirado na belíssima biografia, escrita por Pedro Dutra1 - texto de San Tiago Dantas em que o jurista assenta: "Nada melhor que o positivismo jurídico, exprime, por sua vez, o anti-humanismo. O humanismo significa a sujeição do direito a uma constante: o homem e, segundo penso, o homem universal. Na formulação da norma jurídica tudo é variável, a ocasião, a finalidade, o sistema podem condicionar os elementos da norma, alterando o preceito ou modificando a sanção. Mas o humanismo quer que, nessa função, exista ao lado das variáveis, uma constante, que impõe interiormente um limite ao arbítrio do legislador"2.
De outro, recebi publicação de decisão em agravo de recurso especial, atinente a relevante direito individual e importante questão jurídica a ser pacificada nos Tribunais, proferida em 48 horas da chegada dos autos ao gabinete do Ministro. Alguns podem considerar quão eficaz atua a Corte, eu preferia o tempo em que "Vistos, etc." significava o próprio magistrado ter lido os autos.
Diké e Têmis, nas diferentes acepções, grega e romana, jamais foram concebidas amordaçadas. Logo, nada há de pior do que o silêncio da justiça para os jurisdicionados. E as pretensas razões para o não dizer ecoam como a ausência de som das orquestras sinfônicas. Cuidam-se, em verdade, de desrespeito ao público que tem direito a ver, ler e ouvir julgamentos justos.
--------------------- 1 Dutra, Pedro. San Tiago Dantas - a razão vencida: 1946-1964:o homem de estado. São Paulo: Ed. Singular, v. II, p. 67-75. 2 Dantas, San Tiago. Humanismo e Direito. Verbum. Tomo V. Fascículo 1. Março de 1948, p. 24.
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