Os homicídios passionais mostram-se tragédias na vida das pessoas envolvidas e na comunidade. Ao povo, cumpre julgá-los na crueza de cada destino, consoante a verdade apurada pela persecução penal.
As coincidências me perseguem. Na semana que se divulgou o deferimento da liminar, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779, pelo ministro Dias Toffoli, eu havia lido e relido um conto de Guimarães Rosa denominado Desenredo. Pensei na extensão deste Brasil. Lembrei de júris que participei. Ciúmes, emoção, paixão não apenas entre homem e mulher, que acabaram em atos impensados, em tragédias bilaterais, para dizer o menos.
Fiquei com elocubrações sobre a conversa entre o advogado e o cliente homicida. Qual seria a surpresa se o acusado de matar descrevesse que agiu na convicção de que estaria a defender a honra, diante da traição? E, se a assassina fosse mulher, que num rompante sucumbiu à emoção, ao encontrar a companheira na cama com outra e lhe desferiu facada no peito?
Não se defende, por óbvio, a denominada legítima defesa da honra. Todavia, incomoda o Supremo Tribunal Federal afirmar que determinada defesa não pode ser deduzida no procedimento especial do júri, diante da consagração da plenitude da defesa no julgamento popular, na acepção da Lei Maior (art. 5º, XXXVIII, da CR). Embora correta a ideia de sopesamento de valores constitucionais a contar da igualdade e da dignidade da pessoa humana, desnecessário tanto esforço hermenêutico quanto à ilegalidade da tese defensiva, porque, de legítima defesa, não se vê tipicidade na hipótese (art. 23 e art. 25, ambos do CP).
Daí a se vedar, de modo genérico, à defesa técnica a menção a algo que a autodefesa revelou, há precipício que fere a ampla defesa (art. 5º, LV, da CR). O equívoco da liminar encontra-se no seguinte trecho: "obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento".
O advérbio de modo "indiretamente" não poderia ser empregado na r. decisão. Há muitas razões. A primeira encontra-se na impossibilidade de se retirar do investigado, ou imputado, o direito de dizer o que pensou, ou sentiu, quando do cometimento da infração penal (art. 5º, LV, da CR c.c. art. 8º, 1 e 2 "d", do Decreto 678/92, e art.14, do Dec. 592/92). A autoridade policial não pode, no auto de prisão em flagrante, dizer ao preso que se encontra proibido, por decisão do STF, de descrever a razão pela qual perpetrou o crime. Também, presente ao ato, o advogado não deve convencer o cliente a se calar, para atender o comando genérico da Alta Corte. No plenário do júri, no ato do interrogatório, o juiz penal não pode proibir que o acusado conte aos jurados o sentimento que o levou à prática da infração penal. Deve, sim, esclarecer aos jurados e advertir a defesa sobre a impropriedade do tipo da legitima defesa para o julgamento concreto.
Não importa a valoração que se faça sobre a suposta tese defensiva - reitere-se, tese injurídica, de inegável repugnância social. O problema encontra-se na proibição de se retirarem consequências jurídicas de fato concreto, o qual se deu na realidade fenomênica a contar de aspecto anímico indissociável da conduta típica. Não surge o defensor quem inventou tal animus necandi, mas o imputado que lhe descreveu o elemento cognitivo que o levou à ação típica de matar alguém.
Pense-se, por exemplo, no erro sobre a ilicitude do fato (art. 21, do CP). Com toda as vênias, não há como se negar ao defensor a possibilidade de arguir que o réu supôs no momento do crime, ainda que de forma errada, que a lei conteria causa excludente de ilicitude quanto à honra, se isto for o que o referido réu lhe descreveu quanto ao elemento subjetivo. E, como sabido, esse dado influi em eventual redução de pena.
Também, não se deve esquecer de que a violenta emoção pode incidir na tipificação do homicídio privilegiado (art. 121, parágrafo 1º, do CP), ou, de modo subsidiário, como circunstância atenuante (art. 65, III, c, do CP). Logo, a cena da traição a depender do comportamento da vítima - homem ou mulher, pouco importa - deve influir na sanção penal, desde que tenha ocorrido o crime logo em seguida a injusta provocação do ofendido (art. 121, parágrafo 1º, do CP). Circunstância esta, de natureza temporal, que não importa ao tipo do artigo 65, III, c, do Código Penal.
Tais considerações se fazem necessárias, pois, a extensão dos efeitos da decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, se não valoradas tais características específicas da tipicidade penal, pode acarretar injustiças e aberrações em procedimento criminais em curso.
A correta perspectiva jurídica de eliminar o preconceito em relação à mulher (art. 121, parágrafo 2º, VI e parágrafo 2-A, do CP), nos casos de cometimento do crime contra a vida, não permite que contornos típicos do fato sejam desprezados pelo magistrado, até mesmo porque o legislador já qualificou a conduta, para o endurecimento da pena.
Em verdade, impressiona que juízes criminais e tribunais de apelação ainda acatem a tese da legítima defesa da honra, pois inconstitucional e ilegal, merecendo ser vedada em plenário do júri como argumento para justificação do quesito, previsto no artigo 483, III, do Código de Processo Penal. Porém, a Alta Corte necessita de modular a decisão, porque pode ocasionar distorções no exercício da defesa, o que nada tem a ver com sexo, ou gênero.
Os homicídios passionais mostram-se tragédias na vida das pessoas envolvidas e na comunidade. Ao povo, cumpre julgá-los na crueza de cada destino, consoante a verdade apurada pela persecução penal. Como diz Guimarães Rosa, no Desenredo: "Todo abismo é navegável a barquinhos de papel".
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